terça-feira, 24 de março de 2009

Segredos que matam

Existem segredos tão bem guardados, que fermentam no interior das pessoas e tem a capacidade de as destruir. Não só a elas próprias mas atingindo igualmente o espaço circundante e as várias personagens, que sem saberem participam num argumento, mais ou menos, macabro.

Muitos destes segredos tem a sua origem na baixa infância e vão condicionar toda a adolescência e adultez dos indivíduos portadores dos mesmos. Se alguns deles são exclusivos aos intervenientes, normalmente não mais de dois. Outros são comuns a um núcleo familiar e une os seus elementos numa estranha relação de amor-ódio, desejo de descoberta e luta para manter "esquecido". Alguns destes acontecimentos tornam-se memórias ecrãs e para sanidade do seu portador, a determinada altura, não se distingue o real do imaginário: terá sido um sonho? Terá acontecido mesmo? Comigo? Com alguém próximo?

Alguns destes segredos são comuns a fratrias e só na adultez, após percursos mais ou menos dolorosos, mais ou menos adequados, surge algo que faz a memória emergir e fazer parte do consciente. Partilha-se, é-se desacreditado e o mundo fica ainda mais dorido que anteriormente. A maioria destes segredos podiam ser evitados se houvesse prevenção na vivência da infância. Nunca serão extinguidos os negros segredos familiares, são milenares e todas as famílias tem o seu "telhado de vidro", mais ou menos doloroso, mais ou menos ilegal. Alguns destes "baús" familiares chegam à actualidade já sem qualquer tipo de veracidade ou dados reais, ao longo do caminho foram transformados numa lenda fabulosa de um tetratetra-avô muito corajoso, mal interpretado nas acções por um arqui-inimigo, que ele vence no punho, no machete ou no cano da espingarda. Perdeu-se no tempo o que um dia marcou alguém.

Os adultos exigem às crianças um silêncio que não lhes permite viverem em pleno, desfrutarem de quem são e sonharem livremente com o que desejariam vir a ser. O sofrimento cresce na mesma proporção em que a idade avança. Surge a consciência moral simultaneamente à consciência critica. A luta é interna, os comportamentos desadequados, desajustados, inibidos ou irrequietos levam a relatórios de défice cognitivo, bloqueio emocional e a um sem número de alíneas que mostram a incapacidade daquele individuo de se desenvolver harmoniosamente no normativo. Ao longo do caminho criam-se defesas que evitem que os espinhos flagelem continuamente a carne: uns transmitem o segredo pela acção; outros mantêm e intensificam os comportamentos desviantes ou patológicos; outros acabam definitivamente com a sua dor e o seu silêncio, fazendo um voto eterno de castigo ao outro. No entanto e porque felizmente o cenário não é assim tão negro, existem aqueles que a determinada altura transformam o silêncio num grito ensurdecedor e quebram o segredo. A coragem e a força necessária para esta libertação provêm de um sofrimento inatingível ao tacto, ao olhar e aos sentimentos dos outros. É necessário providenciar no imediato os primeiros socorros, algo que estanque a hemorragia continua de um desespero que não augura bom futuro ou resolução. As perdas que advêm da quebra de silêncios são enormes e castradoras, no entanto menos dolorosas que o fardo do mesmo.

Os maiores gritos de socorro são feitos num silêncio de acções e manifestações anímicas descontextualizadas ao comum dos mortais. São dados em situações de avanços e recuos continuados. O medo é aterrorizador e as consequências, continuamente lembradas, paralisam os movimentos, toldam a coragem e abrandam a força do grito. São gritos que não transformam as partículas em som, são gritos tão secretos quanto os segredos que anunciam. E até para gritar é preciso testar a capacidade de "audição" dos interlocutores. Alguns aguentam menos que o dono do segredo: e agora? que faço? ignoro ou liberto?
As duvidas assaltam quem ouviu o alerta, paralisam-no com o peso de um segredo que agora também é o seu. As noites tornam-se longas e o sono quando chega não descansa. A cabeça é um carrocel em versão acelerada e a confusão mental instala-se. É um fardo demasiado pesado, por mais incoerente que pareça, torna-se mais pesado e paralisante para quem foi confidente do que para quem teve de se adaptar a (sobre)viver com o mesmo diariamente.

Os segredos são devastadores do bem estar emocional e social dos indivíduos. Quanto menor a idade do portador, dependendo se é interveniente ou não, maior será o caos e destruição causado na vida do individuo. Se alguns indivíduos tem a capacidade de conviver com tamanha imensidão e aguardar até à cova para descansar, outros aceleram o processo e outros ainda descobrem no seu caminho seres que demonstram a força e confiança necessária para que possam partilhar e aliviar tamanho peso.

Hoje ouvi um grito no silêncio. Entrou-me pelos ouvidos e tornou-se ensurdecedor. Um grito preso na garganta há três anos. Hoje ecoou, qual sirene em tempo de nevoeiro a avisar que o porto está perto. Se o grito me tocou, a coragem e a força de quem o gritou não menos. O grito vai prolongar-se no tempo e no espaço até que os surdos o ouçam, os mudos o comentem e os cegos o vejam.

5 comentários:

Toze 25 de março de 2009 às 11:30  

Nem sei o que comentar, só dizer que tudo isto é tão verdade ! Um belo e sério texto.

L. K. 25 de março de 2009 às 21:00  

Muito obrigado, é sinal que a mensagem que tinha necessidade de transmitir passou, ficou nesta linhas e a mim fez-me um bem danado: não gosto de segredos, são tóxicos ao organismo :)

Anónimo,  26 de março de 2009 às 09:20  

Tocou-me, engoli em seco... e... escreves textos sublimes, Lagarta!

Acho que todos nós temos, sempre, segredos, mas sem dúvida que haverá alguns razoáveis, eventualmente até saudáveis, e outros bem tóxicos e com um efeito destrutivo.

L. K. 26 de março de 2009 às 23:44  

Concordo Gaulês, todos nós temos os nossos segredos, que não passam de omissões irrelevantes ao bem estar do outro mas que preservam a nossa identidade, evitam a despersonalização e o sentirmo-nos "despidos". Esses são saudaveis e mantem as relações saudaveis, são o nosso mundo se assim lhes quiseres chamar ou entende-los.
Ninguém deve despir a alma por completo sob risco de ficar despojado do seu Eu e vulneravel ao exterior.

Os segredos que aqui são falados são aqueles que são toxicos e de resultados a curto, médio e longo prazo. São daqueles que os despojos lembram Hiroxima, que são impossiveis de esquecer e tornam-se recorrentes ao pensamento e paralisantes dos movimentos, dos sentidos, das emoções e por fim dos próprios seres :)

Desconhecida 8 de abril de 2009 às 00:09  

Excelente texto, que transmite uma bela mensagem.

Um beijinho

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