quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dias II

(...)
O dia tinha-lhe corrido bem, apesar da loucura da manhã. Ou era o que queria acreditar, uma vez que sentia que o dia tinha passado por si, recordava fragmentos do mesmo, as alturas em que saia dos seus pensamentos. Se não o tivessem recordado da hora de saída, provavelmente ainda continuava sentado em frente ao teclado em divagações por um mundo que tão bem conhecia e tão mal entendia.
Saiu para a rua e suspirou:
- Ainda é de dia, já nem me lembrava como os dias estão mais compridos. Um perfeito fim de tarde.
E era um perfeito fim de tarde, a temperatura estava amena e convidativa a uma esplanada e a descomprimir depois de um dia de trabalho. Ainda se lembrava de quando era mais novo e os fins de tarde era ansiados, reunia-se com os amigos num qualquer café e as conversas fluíam entre risadas e amuos. Cada um seguia para sua casa e ficava uma sensação de dia terminado em pleno. Agora não tinha nada disso.
Riu-se...aliás agora não tinha nada além de si próprio. Não podia deixar invadir-se por um sentimento de auto-comiseração.
- Isto não sou eu.
Ultimamente os pensamentos eram tortuosos. Sentia-se só. O amor que se tinha e se dedicava, o explorar das suas próprias capacidades e a auto manutenção da sua motivação e auto-estima não estavam a ser suficientes. Pensou que de manhã estava tão animado e confiante com a epifania de um narcisismo sobrevivente, dos frutos dos seus momentos a sós consigo próprio. Cada vez esses momentos o baralhavam mais, estava a sentir-se a afastar-se dos outros.
- Não posso continuar assim. Não estou feliz e se não estou feliz como poderei fazer alguém feliz...eheheh...como poderei sequer achar estranho que ninguém se aproxime com uma cara destas?
Ainda não tinha perdido a capacidade de se rir de si próprio mas de que lhe servia?? Afinal tinha 40 anos e apenas lhe restava olhar e acreditar no futuro, já que quando olhava para trás não havia nada digno de registo. Era verdade que assumia e se orgulhava do caminho percorrido, das decisões tomadas e do isolamento necessário à obtenção dos objectivos que tinha para si. Não tinha vergonha de o dizer, de assumir os sacrifícios pessoais. Tinham compensado. Atingiu e passou a meta estabelecida.
- Se nunca duvidei de mim, das minhas capacidades e poder de resistência nos últimos 10 anos, então onde erro na persistência com que sigo as novas metas??
Intrigavam-no os desígnios de Deus. tinha a sua fé e durante bastante tempo foi o que o manteve na linha definida. A coragem e a crença de ser protegido por algo superior que o mantinha de pé quando o corpo já não aguentava mais. Mas também era verdade que às vezes os sinais era tão ambíguos, negativos ou simplesmente não apareciam que o sacudiam e deixavam prestes a desistir.
- Talvez seja isso mesmo, talvez deva de desistir de tudo isto e começar uma vida nova, num lugar novo com objectivos novos. Quem sabe não é essa a mudança necessária para seguir em frente, para alcançar as metas a que me proponho. Tenho de pensar melhor sobre isto, mas os sinais são negativos ou não aparecem porque não estou no sitio, no local que me é designado. Talvez tenha de acreditar nisto e deixar a minha vida. Começar de novo. Renascer e transformar-me. Não sei...não sei...
E não sabia mesmo, mas tinha a certeza que não podia continuar assim. Não podia, não queria, não aguentava. Olhava para trás e apenas via o esforço feito, o que tinha abdicado e o que tinha conquistado, sentia-se abençoado e só podia agradecer a Deus, tinha conservado a saúde física e mental...mas merda, com 40 anos sentia, precisava de ver algo mais, precisava de sentir que pelo menos não estava a anos luz das coisas, de seu apenas se tinha a si próprio e à roupa que tinha no corpo:
(riu-se) - E mesmo assim não é toda...Com 40 anos sou um dependente, não tenho qualquer autonomia em relação à minha vida. Não tenho nada...bem pelo menos também ninguém me pode vir buscar nada.
O humor sempre o tinha ajudado a ultrapassar o que não conseguia resolver ou acomodar nos seus esquemas mentais. Tinha mudado. Muito mesmo, desde a adolescência, começava a acreditar que a única coisa que tinha em comum com a sua adolescência era o corpo e até esse já acusava, claramente, a passagem do tempo.
- Foda-se...se os outros se preocupam em ser pais- avós, eu se lá chegar sou um pai-bisavô...ehehehehheh...
Este pensamento animou. Talvez fossem os desígnios Divinos para si e tinha de o respeitar. A sua missão seria esta. Não gostava de olhar para trás, de pensar que poderia ter feito diferente ou de pensar que devia arrepender-se de um sem numero de coisas porque acreditava piamente, que se tinha tomado esta ou aquela decisão, se tinha seguido este ou aquele caminho, tinha sido sempre em consciência, porque os contextos e os aspectos circundantes o levaram a fazê-lo daquela maneira e não de outra. Olhava para o presente, para o seu presente e admirava-se a si próprio pelo que tinha conseguido sozinho...sempre sozinho.
- Como me apetecia dividir este momento com um alguém que se importa-se.
Olhou para o relógio e viu que já não chegaria a tempo para o jantar. Tinha de se apressar ou seria mais um dia em que comia sozinho. Estava farto de comer sozinho.
(...)

2 comentários:

Anónimo,  15 de junho de 2009 às 10:18  

Bom texto, gostei, Lagarta! E muito familiar com muito desse quarentão ;)

L. K. 24 de junho de 2009 às 19:21  

Obrigado Gaulês, um dia a junção destes "dias" será um bestseller...ehehehhehehhe

Este quarentão é um lugar comum, logo identificavel a qualquer um de nós...apenas verbaliza mais que nós ;)

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