quinta-feira, 2 de abril de 2009

Dias

Estava em guerra mas não sabia o porquê. Já tinha acordado assim e o decorrer do dia não lhe trouxe melhorias. Quanto mais tentava retirar importância ao assunto mais este parecia adquiri-lo. Começava a sentir-se perseguido, mais, sentia que o mundo nesse dia conspirava contra si. Olhava pela janela, tão reconfortante em outras alturas e não gostava da imagem reflectida: Bolas... hoje não conseguia embalar-se nos pontos luminosos que assinalam no horizonte um qualquer centro urbano. Os pontos que dançam ignorados por quem ao lado lhes passa e pensa-os como dado adquirido. Merda!!! para ele o seu rosto também era já dado adquirido.
Zangado afastou-se da janela, colocando-se num sítio onde a mesma não o pudesse ver e confrontar com o que hoje não lhe apetecia.


Sentado num cadeirão, olhou em volta e as paredes de tão cheias pareceram-lhe vazias: de que adiantava o orgulho que tinha na sua colecção se não havia ninguém com quem o dividir, ninguém que o quisesse dividir. Hoje não era mesmo um bom dia. A guerra tinha começado e há tanto tempo que empreendia esforços de mediação para manter a paz, pelo menos para que existisse um terreno neutro onde circula-se à vontade. Hoje não dava, ouvia demasiada coisa e demasiado ao mesmo tempo, a cabeça ecoava ensurdecedoramente, o toque era do alarme de ataque aéreo. Acendeu um cigarro e deteve-se a olhar para o borrão. Tão tranquilo, tão sereno o arder, lento e constante. Porque não podia a sua vida ser assim também. Constante, calma e sem esta guerra interior que se tinha instalado e aumentava o conflito a cada reunião de esclarecimento. Puxou outra fumaça e encheu o peito com aquele fumo tóxico e simultaneamente tão libertador.
-Porra, devia deixar de fumar...que se foda, esta guerra mata-me mais que o tabaco.


O racional e o emocional tinham novamente declarado estado de guerra, tentava as tréguas, já tinha utilizado todos os argumentos e a dúvida cada vez se adensava mais. Afinal qual era o seu problema, já tinha colocado tudo na balança e o mais correcto era não se meter mais em emoções e partilhas e merdas.
Levantou-se e atravessou a sala em passo largo. Quem o observa-se pensaria que estava a ser perseguido ou no meio de uma violenta discussão.
Acendeu mais um cigarro, quem queria enganar: estava no meio de uma violenta guerra, num verdadeiro campo de batalha e era atacante e atacado.
-Foda-se...não é justo se de um lado existe razão, no outro não é menos verdade.
Nesse instante parou, respirou fundo e continuou o seu cigarro: de hoje não passa, tenho de tomar uma decisão.
A campainha tocou. Salvo por agora.


Convite irrecusável para jantar, o que tinha a decidir podia ser adiado. Só a si lhe dizia respeito, pensou. Agarrou no casaco e saiu de casa. Hoje iria quebrar o jejum de álcool que tinha estabelecido a si próprio, o estado de espírito merecia-o, precisava de aguentar, de ver com clareza o que se passava, a origem de tamanha guerra. Merecia e pronto.
Durante a noite não conseguiu acalmar o bombardeamento que existia dentro de si. Qual era a dificuldade, afinal era feliz, tinha feito uma escolha, tomado uma decisão e assumido as consequências. Estava onde queria e como queria. Acendeu outro cigarro. Olhou para o céu e reviu-se na lua, que espelhava o esplendor e imensidão da terra, de repente apeteceu-lhe ser novamente criança: era tão mais fácil.
Regressou a casa, cada passo era mais moroso que o anterior. Mas de que fugia?
-O que é me amedronta que prefiro ficar neste desconforto a enfrentar-me a mim próprio?


Abriu a porta e suspirou: agora já não podia adiar o inadiável. Colocou o seu CD preferido a tocar, serviu-se de uma bebida e sentou-se na varanda. O céu mostrava uma lua redonda e perfeita, ilumina o céu, pensou. Quantas pessoas a terão por única companhia. As estrelas acompanhavam esta obra de arte, aperfeiçoando-a…sentiu-se minúsculo e insignificante afinal a sua guerra era apenas um ponto no universo.
Há muito tempo que tinha tomado a decisão de não voltar a apaixonar-se e amar então era surreal, apenas acontecia nos filmes. Estava magoado e não o negava, a melhor maneira de não voltar a acontecer era redireccionar a sua atenção e concentrar-se em coisas que controla-se. Tomar tamanha decisão não tinha sido fácil mas ser despojado do seu Eu também não tinha sido uma escolha consciente e era ele que assumia as consequências do efémero. Auto-impôs-se uma espécie de celibato que a determinada altura se tornou teimosia, bandeira de convicção e afirmação de quem era. Defesa.
Agora via-se no meio desta guerra interna: se o seu racional o aconselhava a não se partilhar, o emocional sentia a falta do calor de outro colo. Não podia ceder, não queria ceder. Que loucura era aquela, ainda lhe escorria na alma o amargo do último adeus e tinha a certeza que não queria repetir a experiência. Tornava-se perturbadora esta necessidade do outro. Não cederia, não podia ceder, não foi esse o acordo que estabeleceu consigo próprio. Estava bem, sabia-o, então para quê complicar, dar importância a sentimentos que aparecem tão rapidamente quanto desaparecem. Em si não desapareciam tão facilmente e ele sabia-o. O epicentro da guerra, da sua guerra.
Não aguento mais, pensou. Mais um cigarro, um último copo, um olhar para o exterior e cama…amanhã será outro dia.
Nessa noite sonhou e espelhou-se no imaginário. Tranquilizou-se e percebeu que era apenas um sonho, nada tinha a temer. Ninguém lhe interessava, nem tinha aparecido outro ser que desperta-se os seus sentidos, ninguém despertava o seu interesse...sorriu, estava a salvo. Estava a sofrer de antecipação.
Nessa manhã acordou com um sorriso, estava bem-disposto, sentia-se bem, sentia-se imortal e feliz, respirou fundo e levantou-se para enfrentar mais um dia, este seria diferente, tinha percebido. Não há perigo, não há ninguém, ninguém o ameaçava. Era apenas um sonho, nada mais que um sonho e os sonhos não são reais. Estava a salvo.

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