quarta-feira, 8 de abril de 2009

Dias I

(...)

As manhãs nunca tinham sido fáceis, por mais que tenta-se odiava o despertar, a azáfama de ter de se despachar para sair de casa, o que invariavelmente levava a que saísse sempre atrasado…até quando se tinha levantado cedo. Hoje apesar de ter acordado revigorado e bem-disposto, como há muito não acontecia, deu consigo a tomar o pequeno-almoço e a pensar que era realmente um ser peculiar: assim que acordava ligava o rádio em algazarra, no entanto não suportava que falassem consigo. Precisava daqueles momentos de update para depois se reiniciar e enfrentar o dia. Largou-se a rir, nem sequer gostava de computadores, achava-os apenas necessários e utilitários no dia-a-dia. Quando se apaixonara, estranhamente durante algum tempo, as manhãs pareciam mais agradáveis, menos difíceis mas até isso mudou e a determinada altura passaram a ser iguais a todas as manhãs da sua vida, não tinha deixado de gostar ou de se sentir apaixonado, preferia pensa-lo como o “conforto da rotina”, quando deixa de haver cerimónia com o outro. Quando ela já não corria para a casa de banho mal acordava, o que fazia com que fosse sempre antes de ele acordar e se penteava, lavava e aparecia com um ar doce e angelical, como se nunca se desgrenha-se como o comum dos mortais. Ele sabia-o e no entanto adorava isso nela, a importância que dava a certas coisas. Soubesse ela como amava o seu ar desalinhado e birra da manhã. Tornou-se rotina, perderam-se os cuidados de agradar ao outro, de esconder as imperfeições, não tinha achado mal. Amava na mesma.
- Que estupidez, acordei tão bem disposto e estou em frente a uma chávena de café a tornar uma manhã fantástica em momentos nostálgicos.
Olhou para o relógio e viu que estava atrasado. O passado tinha-o novamente atrasado. Mais um ponto a limar, o passado está resolvido, a porta fechada e ele nunca olhava para trás.
Vestiu o casaco, armou-se com o seu melhor sorriso e saiu para a rua. Tal como esperava, o sol era só seu, sentia-se egoísta e apetecia-lhe pensar que detinha o poder de pôr o sol a brilhar só para si, uma cumplicidade ou um miminho do Universo, como preferia chamar-lhe.
Desceu a rua e chegou à esplanada, sorria a todos, pediu o seu café e nesse dia até brincou com a senhora que o costumava servir. Apetecia-lhe gritar ao mundo que estava feliz, que era feliz, que tinha sorte e agradecia a Deus todas as bênçãos, todas as alegrias e principalmente ter-lhe concedido o maior dom: saúde. Riu-se de si próprio, estava um sentimentalista, tinha-se concedido uma nova graça: usufruir dos seus próprios sentimentos, entrega-los a si e desfrutar dos mesmos, como uma criança a quem deram o gelado preferido. Ele tinha o gelado preferido, agora sabia-o.
Enquanto o sol o abraçava num abraço terno e quente deu consigo a fazer analogias em relação a si próprio:
- Sou como um sobreiro, tenho um tronco largo protegido por uma carapaça dura que me protege das intempéries, das agressões do exterior. Tenho a certeza de quem sou e de onde estou, as minhas raízes são longas, sólidas e fortes o suficiente para me manterem fixo ao meu caminho, no entanto a minha cabeça é sonhadora e tal com a copa de um sobreiro sorri ao ver o vento, deixa-se levar por ele e dança freneticamente ao som das suas vontades. É confiante, é forte, sabe que se pode deixar levar na loucura do vento pois o seu tronco e raízes mantêm-no no real, seguram-no às metas estabelecidas. Assim sou eu.
Sacudiu a cabeça pensando que estava em solilóquio, agora é que iriam ter a confirmação plena do seu desequilíbrio e riu como se houvesse quem partilha-se deste seu estado de humor. E havia… ria-se de si e consigo, haverá coisa melhor, pensava.
- Arrgh…bolas…agora é que estou mesmo atrasado.
Levantou-se e saiu a correr. Entrou no carro e sentiu aquele quente típico dos carros a colar-se à sua pele. Sentiu-se novamente abraçado. Hoje o dia vai correr-me muito bem – pensou. A manhã tinha-se iniciado como naqueles primeiros tempos de vida em comum, estava novamente apaixonado. Tinha descoberto que a maior paixão tem de começar em si, por si. Não o voltaria a esquecer, não voltaria a dar-se, sem se ter primeiro, não voltaria a duvidar de si ou das suas qualidades como pessoa, como homem e principalmente como companheiro. Definitivamente tinha percebido que não era, nem nunca poderia ser o que ela procurava porque era o dobro do que merecia. Como ser imperfeito que era tinha a suas qualidades como perfeitas e procurava no outro o mesmo: apaixonar-se pela perfeita imperfeição.
Ele não vivia em mentiras, em histórias de encantar e situações de faz de conta, agora percebia o porquê de amar o seu ar desalinhado, a depilação por fazer e a sua desarrumação: essa era a pessoa real.

(...)

2 comentários:

Toze 8 de abril de 2009 às 22:37  

Todo o nosso desenrolar se resume a isto, e com isto reflectir-mos:

"Tinha descoberto que a maior paixão tem de começar em si, por si."

Realmente Lizard tens toda a razão, se não gostarmos e não acreditarmos em nós, então nunca virá a paixão pelas coisas e pela vida. Seguiremos no correr dos dias somente à espera que passem, e isso não é vida, e dói...muito!

Gostei muito deste "Dia I"
Obrigado :)

L. K. 12 de abril de 2009 às 17:23  

Só podemos estar realmente apaixonados pelos outros ou por algo quando estamos despretensiosamente apaixonados por nós, pela vida e pelos pormenores que constituem o todo e porque só assim, é possivel amar um todo...infelizmente para percebermos isto temos muitas vezes de passar pelos dias que doiem e deixam feridas que precisam de cicatrizar. Mais uma vez o poder da transformação é nosso: primeiro beijo-me, respeito-me, olho-me e respiro-me, quando me amar será mais recompensador amar tudo o que me rodeia ;)

Há quem viva uma vida inteira rodeado de rosas e nunca se aperceba que no extremo, imediatamente acima dos espinhos, existe o belo, único, iniguálavel e apenas para eles. Cada um tem o seu mas é preciso procurar e aceita-lo ... aceito-me ;)

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