domingo, 20 de junho de 2010

Um Acordar Perturbador.

Naquela manhã o acordar tinha sido perturbador. A consciência de que existe um sistema fisiológico autónomo que se está a borrifar para as vontades do sistema psicológico, assaltou-o naquele momento. Tentou resistir aquela sensação de impotência: os olhos ardiam e não abriam, a cabeça rodopiava numa velocidade que o deixava nauseado, mas o pior eram as pernas não obedecerem à sua vontade. Até o coração batia a uma velocidade vertiginosa - como se fosse explodir. Não admitia esta autonomia do corpo, se alguma coisa acontecesse a culpa não era sua mas sim de um sistema fisiológico desobediente.
Após uns segundos que sentiu como horas arrastou-se até ao banho. A água cura tudo - pensou - irá despir este mau-estar. Forçou-se a entrar no banho e ligou a água. Não, não podia ser, em vez do despertar que pensava ir sentir, tinha a sensação de se estar a afogar. Merda! E agora quem é que ia culpar por isto? A quem fustigar e responsabilizar pelo modo como se sentia. Sempre tinha vivido com a certeza indestrutível de que tudo o que lhe acontecia era culpa dos outros e em último caso, do mundo. Mas não havia ali ninguém, há muito tempo, que não havia mais ninguém. Atribuía a sua solidão à falta de capacidade dos outros para o acompanharem, para o perceberem e por serem, na verdade, uns invejosos e coitadinhos. Dava-lhes a sua amizade, ensinava-os a viver as suas vidas e alguns até lhes tinha ensinado o que comer e beber, quando e onde e o que vestirem e no fim eram uns ingratos a quem ELE tinha dado uma vida e depois o tinham deixado. Não fazia mal porque ele já sabia que não prestavam e que eram básicos, mas gostava de lhes dar uma oportunidade de serem alguém.Até as mulheres, deixava-as entrarem na sua vida e depois só faziam coisas para o aborrecer, umas parvas, todas umas parvas. A culpa é da sociedade que lhes deu alma e vontades, vejam só. Ele educava-as, mesmo sabendo que nunca lhe iriam chegar aos calcanhares, dava-lhes uma oportunidade e depois quando já não aguentava mais tanta idiotice despachava-as. Não há espaço na sua vida para gente burra. Reconhecia que algumas se anteciparam na ida e o tinham magoado, porque não souberam reconhecer o quanto ele lhes tinha dado, o quanto ele tinha descido para estar ao nível delas...mas essas...essas iam pagar por isso. Não sabiam do que ele era capaz: ia imiscuir-se nas suas vidas como uma sombra e tirar-lhes tudo. A culpa era delas, não tivessem abalado porque ele ainda não tinha decidido isso. Umas parvas, frustradas e metidas a boas. Quem é que precisa de gente assim, ele, com certeza que não!
O mesmo se passava com o trabalho, já tinha passado por muitos e sempre tinha sido dispensado pela incompetência dos outros que não suportavam que ele fosse o melhor. Havia anos que tinha percebido que patrões e chefes eram só bazófia e cunhas, não lhes reconhecia capacidades - nenhumas aliás. Há anos que sabia que a culpa da sua vida estar como estava era dos outros, que se achavam no direito de opinar e ter vontade própria, onde ele sabia que neste mundo só existem dois tipos de pessoas: as que pensam que sabem e as que sabem. Ele era dos que sabia.
A sua educação tinha sido no sentido de ser sempre o melhor, o perfeito e os seus pais tinham conseguido isso. Na perfeição. Os seus pais haviam sido tão bons educadores que o avisaram que iria deparar-se com pessoas que, à vista desarmada, pareciam saber mais do que ele, mas nessas alturas bastava-lhe ser observador durante uns tempos, ser "o predador" - dava-lhe vontade de rir só de pensar como era tão verdade. Tinha resultado. Orgulhava-se de ser tão bom "predador" que em inúmeros casos se tinha tornado bem melhor que a presa na execução da sua "especialidade" e prova disso, foram os anos em que andou de hospital em hospital e os médicos que se achavam muito espertos e competentes, nunca acertavam no diagnóstico. Começou a ir à net, a estudar e a pesquisar e ao fim de um par de vezes já os conseguia corrigir, ELE, sabia qual era o seu diagnóstico só não tinha poder para executar a parte de receituário...mas isto também se resolvia, porque nas farmácias "papava-os " a todos. É verdade que criou alguns inimigos mas a culpa era deles, que acham que só porque tinha andado na universidade isso lhes conferia capacidades. Ignorantes. Hoje tinha a certeza da ignorância dos outros, da culpa deles, nunca tinha observado uma situação como a que vivia hoje. Como é que os filhos da puta não o tinham preparado para isto?
Como é que aqueles convencidos, que nada sabiam, não tinham antecipado que
isto lhe poderia acontecer?
Se fossem humildes tinham-lhe ensinado a resolver a situação. Ele era o melhor a resolver coisas, todos os sabiam...ainda que não o reconhecessem, no entanto, estava à vista de que tudo onde se tinha metido era melhor que o fazedor original...e ele tinha-se metido em tudo!
Diluído nestes pensamentos, não se apercebeu que estava à horas debaixo de água, diluído na sua raiva perante a culpa dos outros não se apercebeu que há muito deixara de respirar. Diluído nas suas certezas absolutas não reconheceu a morte quando ela chegou, não era para ele, também ela, se tinha enganado. Diluído nestes pensamentos nunca se apercebeu que nunca se tinha sentido verdadeiramente amado, nunca se tinha sentido desejado e nunca o fizera pelos outros. Diluído nestes pensamentos nunca se apercebeu que toda a sua vida buscou uma aprovação de uns pais para quem a perfeição nunca era o suficiente.

Diluído no seu amor próprio não percebeu que nunca viveu, que já estava morto antes do dia da sua morte.

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