segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Quem tem medo compra um não - Eduardo Sá

Quem tem medo compra um não - Eduardo Sá

"A diferença entre as pessoas corajosas e os medricas é que as primeiras reconhecem os medos e os segundos são, unicamente, destemidos na forma como os iludem. Por outras palavras: todos temos medo. E isso é bom.

Os medos protegem. Há medos que são uma espécie de equipamento de base, com que nascemos. O medo das pupilas longitudinais, por exemplo (próprias dos felinos, dos tubarões ou dos répteis) não precisa duma aprendizagem recorrente. Representa um precioso seguro de vida sempre pronto a socorrer-nos. Já outros medos, tanto têm a ver com experiência de sofrimento agudo a que fomos expostos como com medos dos nossos pais que nos foram assustando e que tomámos como nossos. À primeira vista, os medos parecem um bocadinho estúpidos. E compreende-se porquê. Disparam um semáforo amarelo em todas as circunstâncias que se assemelham aquelas em que os conhecemos pela primeira vez. Mas pecam por excesso de zelo: todas as situações que, de perto ou de longe, se aproximam daquelas que nos terão ameaçado são sinalizadas com se, com isso, o nosso sistema nervoso fosse alguns passos à nossa frente e olhasse por nós. Dito doutra forma: o anjo da guarda – que nos protege e nos guia – vive dentro de nós. Acresce que o semáforo amarelo, de que vos falava, por vezes, é atrevido: atropela-nos os gestos com um coração que galopa ou aumenta a temperatura do corpo com se tivéssemos o termóstato avariado. Na verdade, representa uma forma de nos dizer:

- Estás a aproximar-te duma situação em te podes magoar! Tem cuidado!

 Mas como somos ensinados a reprimir estes sinais, há alturas em que ficamos partidos ao meio: uma parte de nós assume-os; outra, repreende-os. Como, ainda por cima, nas situações de algum alarme, uma grande quantidade do nosso sangue foge - qual batalhão de reservistas - para as massas musculares (não seja preciso fugir ou atacar…), com menos oxigénio no cérebro, diante dum medo ficamos todos um bocadinho mais… “burros”. Apesar de todos os vexames que enfrentar um medo possa trazer, fugir dele faz pior. Isto é: a melhor forma de ficar preso a um medo é fugir dele.

Os medos são companheiros mais ou menos frequentes das crianças. Aumentam ou decaem consoante a maneira como os pais não os entendem ou os abrigam. Se os pais os acolhem e, de forma firme, persuadem os filhos a enfrentarem-nos, o semáforo amarelo apaga-se aos poucos. Se os ignoram, tornam-nos um pouco mais alaranjados. Se os almofadam por todos os lados, dão-lhe gás e eles ficam avermelhados. Mas veja-se como se sossega um medo, como exemplo. O medo das trovoadas é natural como a sede. Diante dele, todas as crianças se esgueiram, no meio dos relâmpagos, para a cama dos pais. Ao verem-nos, com o seu sussurrante ressonar, competindo com o ribombeio dos trovões, aninham-se entre eles e adormecem. Se tivesse legendas, uma cena como essa quereria dizer:

- Se os trovões me fizessem mal os meus pais não iriam, logo agora, adormecer em serviço…

Se o medo é como os pontos cardiais, quando são os pais que o promovem tudo se complica um pouco mais. Será razoável que as crianças tenham algum medo dos pais? É. Sobretudo, quando percebem que transgrediram as regras que eles definem. O que as assustará mais: a zanga dos pais ou a sua interminável condescendência? A condescendência que nunca se esgota. E porquê? Porque aquilo que os pais entendem como qualquer coisa de mal, no comportamento dos filhos, os magoa quando isso os assusta ou os aflige. É natural, portanto, que – ao sentirem-se magoados – os pais recorram a alguma dor para dissuadirem as crianças de irem por diante com os seus dislates de força de elite. Como um simples “não” nunca parece chegar, os pais reforçam-no um pouco mais: uma palmada ou um castigo será uma forma de enriquecerem, com um pouco mais de medo o medo que as crianças precisam de ter para estarem mais protegidas de alguns perigos potenciais. Quero dizer: há um “quanto baste” no medo que protege as crianças. Medos de menos estragam-nas. Medos demais fazem-lhes mal.

Devem os pais explicar cada “não”? Estão proibidos! Porquê? Porque exercer a autoridade num clima de “desculpa qualquer coisinha”torna os pais medricas de serem pais e transforma uma família numa… ditadura do proletariado. A melhor das explicações são os bons exemplos dos seus actos de todos os dias. As explicações devem ser a excepção. Jamais a regra.

Devem os pais castigar? Estão proibidos de fazer do castigo uma constante na vida das crianças. Ele será a excepção! Como somos animais de sangue quente (e latinos) sempre que fazemos de conta que ignoramos uma tropelia, a nossa ira acumula créditos que, a pretexto dum episódio irrelevante, faz com que os castigos mais pareçam os lenços que o Luis de Matos descobre numa cartola: “E depois ficas sem a sobremesa, a play station e o computador. E não vais à festa de sábado…” E, passadas algumas horas, tamanha recessão é revista em baixa as vezes que forem necessárias até que tudo volte à “casa da partida”. Quando nem os pais levam a sério um castigo é porque ele não é de fiar…
Os pais estão autorizados a amuar? Estão proibidos. Um amuo é uma birra para dentro. Enquanto uma pequena palmada arde uns minutos, um amuo amachuca pela vida fora.

Depois de as avisarem duas vezes, os pais estão autorizados a “passarem-se” com os filhos. “Passarem-se” será: abrirem-lhes os olhos, darem-lhes um grito ou, excepcionalmente, uma palmada. Por outras palavras os pais deviam promover a “via verde” ou o vermelho vivo. Por isso, estão proibidos de educar em amarelo intermitente. Isto é: estão proibidos de se transformarem nos “chatos oficiais” lá de casa. A zanga na hora é a melhor amiga da autoridade. E a autoridade só se conquista pela sabedoria que se reconhece e com o sentido de justiça que se demonstra. A autoridade baliza o medo. O autoritarismo acarinha o pânico (que é uma forma de ter medo do que mete medo e de quem o protege, ao mesmo tempo). É por isso que o pior dos medos das crianças é o medo (sem quartel) dos pais. Quem são os pais mais amigos dos medos?

Os pais que mais assustam as crianças são aqueles que nunca se zangam. O que as assusta neles é a sua indiferença. Vemo-los, por exemplo, quando se deliciam num restaurante por entre os guinchos duma criança que fazem de Tarzan um indomável de trazer por casa.
Logo a seguir, vêm os pais que têm birras em que partem a loiça e, quando o não fazem, dizem aquilo que nem uma grosa de cacos consegue escaqueirar dentro de nós. A ira dos pais assusta que se farta. E não é de admirar que, por medo, diante dela, os filhos se tornem crianças exemplares.

Mais ou menos a par, vêm os pais que - ora irascíveis, ora pela depressividade que nunca se resolve - são hostis no tom com que lidam com as crianças. Junto deles, o Rezingão, da Branca de Neve, mais parece o Noddy. Os seus filhos, ou se atilam ou disparatam. Ora fazem de “panela de pressão” ora se transtornam por entre uma erupção furiosa. Quem dera que quem os educa nunca esquecesse que o controle é o melhor amigo dos impulsos…
Já os «pais-pirilampo», tão depressa acarinham como, de seguida, violentam. São inconstantes e imprevisíveis. E estonteantes das variações bruscas do humor a que os filhos, por mais que se tentem ajustar, parecem nunca se adequar. Seja o que for que os tenha feito assim, estes pais intimidam pela hostilidade que lhes foge no tom com que lhes falam. São ásperos e agrestes. E magoam. Aos poucos, vão-se tornando mais progenitores e menos pais. E de tão assustadores, fazem com que as crianças ganhem medo de tudo. A começar pelo medo da própria sombra.

Todos nós colocamos algum sofrimento na educação dos nossos filhos. Na verdade, essas breves frustrações funcionam como uma campanha de vacinação. Sempre que as crianças aprendem a conviver com alguns “nãos” aguçam o engenho de os contornarem. Por cada não, é natural que fiquem com uma raiva de estimação, em relação aos pais. Durará, quando muito, meia dúzia de minutos. E vem equipada, um ror de vezes, com um: “não gosto mais de ti”(que, em tradução simultânea, quer dizer: “se gostasses mesmo de mim far-me-ias todas as vontades!”). Será de esperar que, no calor da ira, se insurjam e, atabalhoados, lhes chamem: “estúpidos”? Obviamente que não. Ninguém deseja que uma criança seja um anjo na Terra. Só se espera que, dentro das regras dos pais, elas aprendam a ser insolentes com maneiras.

Se uma criança cresce dominada pelo medo, ora se torna exemplar, entre os adultos e na escola, ora faz da violência que distribui de forma gratuita uma forma de meter medo ao medo. Afinal, quem tem medo mete medo. E quanto maior o medo, mais ele se afronta, violentando.

Todas as crianças são inteligentes e são atentas. São, portanto, um “motor” topíssimo de gama. Sem a autoridade dos pais faltam –lhes os “piscas e a caixa de velocidades. Sem o amor deles o combustível. Sem nada disso, por cada medo que tenham refugiam-se nele e desafiam-no, ao mesmo tempo. E fogem por diante. Como se metessem medo ao medo. Como se quem tem medo, não tendo quem o acolha, comprasse (a torto e a direito) sempre mais um não."


In: Ensino Privado

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